terça-feira, 27 de fevereiro de 2018


A OBSESSÃO DO FOGO
DE
UMBERTO ECO


(DO PAPIRO À ERA DIGITAL)


Adriano Milho Cordeiro[1]


            Jean-Philippe de Tonnac conduz à volta da importância dos livros no decurso da História, um especial diálogo entre Umberto Eco, excepcional romancista e pensador do mundo hodierno e Jean-Claude Carrière, cineasta e ensaísta.
O livro acompanha-nos há muito. «Do mesmo modo, se o livro electrónico acabar por se impor em detrimento do livro impresso, há poucas razões para que este último seja expulso das nossas casas e dos nossos hábitos. O e-book não matará o livro. Assim como Gutenberg e a sua genial invenção não suprimiram de um dia para o outro o uso dos códices, nem este, o comércio dos rolos de papiro ou volumina[2].» Existe, isso sim, um ampliar do conjunto de oportunidades de registarmos os nossos conhecimentos e as nossas memórias. O filme ainda não trucidou a pintura, nem a televisão o cinema. A civilização ocidental sacralizou o livro. De certa forma, com a era da Internet quebrámos a antiga e costumada ligação estabelecida entre os discursos e a sua materialidade memorizada, os livros em formato tradicional. Alguns falam em subversão. Não serão antes sinais dos tempos, um assumir diferente no que diz respeito ao repositório das memórias!?
Porém, quanto à conservação das obras em formatos clássicos, não é por mero acaso que Umberto Eco paga uma soma considerável para que a sua colecção esteja segura. Nem foi por uma eventualidade que escreveu o romance, O Nome da Rosa sobre uma biblioteca que alguém incendeia. No entanto e apesar de seguros, será sempre uma tragédia se um exemplar de um livro for destruído, quer isso aconteça em relação à biblioteca pessoal de Umberto Eco, quer em relação a outra qualquer. Então se um dado objecto de ‘sabedoria / cultura’ for único, ou raro e se perder para sempre, não há dinheiro que pague tal dano: são valores inestimáveis que se entrelaçam e emaranham no mundo dos afectos. A partir de um dado momento não têm preço. Na verdade, o coleccionador de livros acondiciona dentro de si o seu afecto colossal pelos volumes escritos e a obsessão terrífica do fogo, o que ainda o deixa mais inquieto.
Todavia, que assuntos são tratados em A Obsessão pelo Fogo? «A finalidade das conversas entre Jean-Claude Carrière e Umberto Eco não era estatuir a natureza das transformações e perturbações que a adopção (ou não) do livro electrónico em grande escala pode anunciar. A sua experiência de bibliófilos, coleccionadores de livros antigos e raros, escrutadores e batedores de incunábulos, leva-os aqui a considerar de preferência que o livro é, tal como a roda, uma espécie de perfeição inultrapassável na ordem do imaginário. Quando a civilização inventa a roda, está condenada a repetir-se ad nauseam. Quer se escolha remontar a invenção do livro aos primeiros códices (cerca do século II da nossa era) ou aos rolos de papiro mais antigos, encontramo-nos diante de um instrumento que, para lá das mutações que sofreu, se revelou de uma extraordinária fidelidade a si mesmo. O livro surge aqui como uma espécie de “roda do saber e do imaginário” que as revoluções tecnológicas anunciadas ou temidas não poderão deter. Uma vez estabelecido este ponto tranquilizador, pode dar-se início ao verdadeiro debate[3].» Por isso, a obra, A Obsessão do Fogo abre com o capítulo «O livro não morrerá». Na opinião de Umberto Eco, esse objecto extraordinário não desaparecerá… diz-nos o pensador: «O livro é como a colher, o martelo, a roda ou o cinzel. Uma vez inventados, não se pode fazer melhor. Não se pode fazer uma colher que seja melhor que uma colher. Os designers tentam, por exemplo, melhorar o saca-rolhas, com sucessos muito moderados e que a maior parte das vezes não funcionam. Philippe Starck tentou inovar no campo dos espremedores de limões, mas o seu modelo (para salvaguardar uma certa pureza estética) deixa passar as pevides. O livro provou os seus méritos e não consigo ver como, para o mesmo uso, se poderia fazer melhor do que o livro. Talvez evolua nas suas componentes, talvez as suas páginas deixem de ser feitas de papel. Mas continuará a ser o que é[4]
            À medida que lemos esta obra, percorremos mais de dois milénios e meio de História e as ideias de dois grandes pensadores acerca de papiros, volumina, códices, enfim, de livros e dos ‘revolvimentos’ que esses objectos provocaram na espécie humana e no planeta Terra. Tentamos, por vezes, perceber o contexto em que surgiram ou como poderão ter sobrevivido; todavia descobrimos muito pouco, pois a maior parte desses artefactos tem uma história de séculos; foram usufruídos provavelmente por gente ‘simples’ e ‘poderosos’, atravessaram revoluções, ou foram salvos, in extremis de qualquer calamidade. Na maior parte dos casos, se pudéssemos indagar o “ADN” ‘errático’, ou seja, o itinerário e os caminhos que cada volume percorreu até chegar a nós, de nada nos serviria uma vez que nada ficaríamos a saber, pois as marcas indeléveis perderam-se no pó dos tempos e, da sua história particular quase nada resta. O que sobrou do passado e o que podemos contemplar em nossas mãos deve-se muitas vezes a néscios e pacóvios[5].
            Eco e Carrière viajam com palavras e sobre as palavras que compõem um livro e também sobre a sua ligação com vida dos humanos; afinal, os dois intelectuais jornadeiam sobre a História do livro em particular e da Literatura, da Arte e das Ideias em geral. Fala-se do proselitismo da ignorância e da paixão pela idiotia[6]. O que percorremos à medida que lemos as páginas de Obsessão pelo Fogo é um incrível exercício de erudição de dois homens, habituados a escrever livros, mas também a ler, dois apaixonados coleccionadores de livros. Toda a sabedoria e cultura individual de Jean Claude Carrière e Umberto Eco perpassam nas páginas da obra.
            Pressentimos que a obsessão pelo fogo, ou seja, a queima e a destruição de cultura(s) e bibliotecas, ou até de livros individualmente, permanecerá se a espécie humana não evoluir e transformar a sua própria consciência, o que diga-se em abono da verdade, para já, não nos parece possível, infelizmente.
            Tenhamos esperança, ainda assim. Alguns dos Direitos Fundamentais do Homem assentam em artigos da Constituição Ateniense do século IV a.C.[7] Só teremos de esperar mais alguns milénios até que algo mude um pouco, para que afinal tudo fique quase igual. Talvez a obsessão pelo fogo tal como a conhecemos, tão física, tão corporal desapareça e surjam outras formas mais virtuais de controlar, tão macias e aveludadas, numa dissimulação tão perfeita, que obsessivamente não tenhamos dado por elas surgirem, ou talvez, por dúvida ‘cauta’, intuitivamente nos façamos de obtusos. Ou talvez não! Talvez se verifique precisamente o contrário.

A saga da errância humana em busca de utopias haveria de permanecer até hoje e julgo que é da nossa condição que ela viva para sempre em cada um de nós. Uma dessas erráticas utopias liga-se a um défice de amor e também em alguns casos, à falta de entendimento que o ‘Homem’, ou alguns ‘humanos’ têm mostrado pelo livro ao longo de milénios. Os livros, esses eternos amigos em formato tradicional, ou em novos moldes ajudar-nos-ão na deriva da existência e a torná-la menos procelosa.

Concluindo: «Com a inteligência e o humor que lhes são reconhecidos, Eco e Carrière encetam uma viagem pela história dos livros e da literatura no geral, desde os papiros até à era digital da Internet e dos e-books. Um notável exercício de erudição de dois leitores apaixonados e coleccionadores de livros, uma espécie cada vez mais escassa numa era de obstinação pelo progresso tecnológico[8]






[1] - Membro Colaborador do CLP – CENTRO DE LITERATURA PORTUGUESA DA FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA.
- Membro Colaborador do CECH – CENTRO DE ESTUDOS CLÁSSICOS E HUMANÍSTICOS DA FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA.
- Mestre em Literatura Clássica. Mestre em Estudos Clássicos – Mundo Antigo. Doutorando em Literatura Portuguesa e em Poética e Hermenêutica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
[2] Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, A Obsessão do Fogo, Lisboa, Difel, 2009, p. 9.
[3] Idem, Ibidem, pp. 10-11.
[4] Idem, pp. 20-21.
[5] Vide  http://www.wook.pt/ficha/a-obsessao-do-fogo/a/id/2020852.
[6] Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, op. cit., p. 193.
[7] Cf. Delfim Ferreira Leão, Aristóteles. Constituição dos Atenienses, Introdução, tradução do Grego e notas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2003.  
[8] Cf. http://www.wook.pt/ficha/a-obsessao-do-fogo/a/id/2020852.

Sem comentários:

Enviar um comentário